Porque Batman TDKR NÃO é um conto fascista (Parte I)

que já vi. Você pode ler a crítica aqui, no blog Quadrinheiros. Refletiremos um pouco sobre a análise deles e mesmo algumas imagens do post serão reutilizadas, então, recomendamos a leitura dos posts deles para melhor compreensão de nosso texto. Como disse antes, a análise deles é muito boa, e não pretendemos com essa resposta causar polêmica, ou invalidar o ponto de vista deles, mas apenas levantar a discussão e resgatar um dos pontos mais importantes (e paradoxalmente, mais esquecidos) do revisionismo dos anos 80: sua dimensão ética. Para isso, teremos que percorrer alguns pontos da argumentação do post original e apresentar nosso ponto de vista sobre eles.

1- Frank Miller apresentaria posturas fascistas nos anos posteriores. E sempre foi um conservador de direita.

É fato que Frank Miller sempre foi um entusiasta da direita americana. Pior ainda: é notável que progressivamente ele foi tornando-se mais e mais conservador e intransigente. Suas obras mais recentes, claro, tem um marcado conteúdo xenófobo, representativo do que há de pior do discurso republicano. Isso parece resolver a questão não é mesmo? Martelo batido: é claro que embora não tenhamos percebido à época, TDKR era apenas mais um dos passos de Frank para fazer um brainwashing em todos nós nesse discurso pró-fascista que sempre lá esteve desde o começo. Seria isso mesmo?

Temos, porém, que limpar o meio de campo, antes de seguir. Em primeiro lugar cabe observar as recomendações dos críticos de arte e teóricos de interpretação. No seu livro Os Limites da InterpretaçãoUmberto Eco chama a atenção para à impossibilidade de realizarmos uma interpretação com foco na intenção do autor, uma vez que a) nem sempre as intenções do autor são publicamente conhecidas e é possível que permaneçam de foro íntimo; e b) é possível – e isso é relativamente conhecido desde que Freud popularizou o conceito de inconsciente – que nem mesmo o autor saiba as reais intenções por trás da escrita de sua obra.

Resta, portanto, analisar quais são as intenções da obra, e verificar se, para uma dada interpretação baseada em um determinado momento, há elementos que a validem posteriormente.

Há ainda uma outra observação a ser feita, sobre o risco de se analisar essas “intenções de autor”. É questionável, e mesmo perigoso, traçar uma linha reta na evolução do pensamento de um escritor. É fácil dizer que “elementos que atestam um comportamento posterior já estavam presentes anos antes” mas, embora possa haver certa precisão psicológica neste argumento, há que se observar que não são estranhos os casos de profundas mudanças de postura (ética política e econômica) de alguns autores. Da conversão de Paulo, às guinadas neoliberais dos anteriormente esquerdistas Ferreira Gullar Arnaldo Jabor , a história não cessa em nos fornecer exemplos de escritores e artistas “vira-casaca”. No mais, o desenrolar da obra de Frank Miller não é tão distante de como a própria tendência revisionista evoluiu, o que levanta a questão (muito mais interessante) de se a progressiva aceitação de posturas fascistas nas HQs são algo exclusivo de Miller, ou se são um produto da época – um movimento que precede o 11 de setembro, mas que sem dúvida foi intensificado por ele.

2- Batman: The Dark Knight Returns consolidaria a imagem de um homem-morcego violento e psicótico. Isso por si só já seria uma prova de que a obra é uma apologia ao fascismo, não?

A onomatopeia não esconde que alguns ossos foram quebrados com esse golpe mesmo que Batman informe no recordatório que há maneiras de sair da situação com “mínimo contato”. Ele nitidamente OPTA pela violência.

É nítido que o Batman de TDKR é ultraviolento. Ele trata os criminosos com desprezo e sempre que possível abusa da força. Ora abuso de poder e posição contrária aos direitos humanos é certamente uma característica de direita, não é mesmo? De fato, o Batman de TDKR é REALMENTE um personagem com fortes tendências fascistas e REALMENTE é apresentado com alguém com sérios problemas psicológicos. Mais uma vez parece que a questão está resolvida e que, de fato TDKR é um tratado de apologia ao recrudescimento no combate ao crime.

Mas… espere. Analisemos outras obras da época. Não eram também ultraviolentos e psicologicamente problemáticos Juiz DreddV. RorschachMarshall Law ? E não eram eles todos personagens criados por autores nítida e declaradamente de esquerda, abertamente contrários ao conservadorismo e a violência política típicas dos EUA e do Reino Unido na época?

O problema é que muitas vezes somos prejudicados por centrarmos no massaveísmo da coisa e ficamos cegos para o contexto geral da obra. Da mesma maneira que um grande número de pessoas lê Rorschach como o herói de Watchmen, e fica cego para seu discurso fascista, ou a revista Veja acredita que o Capitão Nascimento é um herói, perdendo toda a crítica aos abusos de poder policial presentes em Tropa de Elite (o que obrigou o diretor a fazer o Tropa de Elite for dummies que é o Tropa de Elite 2), é fácil se empolgar com os quadros de porradaria brilhantemente desenhados por Frank Miller e achar que a mensagem direta da HQ é : toda violência é justa no combate ao crime.

Bruce vê em Duas-caras, apesar de sua face reconstituída, sua real face… que é um reflexo do morcego. No fim, são ambos faces de uma mesma moeda…

Pois, se é verdade que o homem morcego aparece como um homem obcecado psicologicamente, isso na verdade não é uma defesa do direito à violência psicótica (o que seria, aliás, um óbvio contra-senso como intenção), mas um lembrete permanente ao leitor de que não há diferença completamente nítida entre o que combate o crime e o criminoso.

Na cena icônica em que Batman confronta um Harvey Dent já com o rosto restaurado através de cirurgia plástica, temos um exemplo claro disso. Harvey pede para que Batman ignore sua aparência e apenas o escute… e diga então que imagem aparece em sua mente. Em uma sequência brilhante de quadros Frank Miller mostra o processo associativo: Batman vê o verdadeiro Harvey, ainda com a face dividida, um eterno Duas-caras. Mas vê também um morcego. Os dois são obcecados com seus alter-egos.

Se lembrarmos que a cirurgia de restauração facial de Harvey foi bancada por Bruce Wayne é fácil perceber que havia uma esperança de Bruce de, ao resolver os problemas de Harvey, encontrar esperanças de se livrar do peso do manto do morcego… cabe lembrar que em TDKR, Bruce é POSSUÍDO pelo símbolo do morcego… ele age sem ter controle dos atos no início da história, buscando aproximar-se novamente da imagem de Batman (raspa o bigode, bate em criminosos, tudo isso sem tomar consciência de suas ações, como um sonâmbulo).

Além disso, há a sutil implicação de que Bruce Wayne estava indiretamente tentando se matar no começo da revista (e que haveria sido salvo por essa sua personalidade dissociada que era o Batman, pelo menos duas vezes… pilotando o carro na pista de corrida e ao resistir a uma tentativa de assalto).

Agora, corrijam-me se eu estiver errado: associar comportamento ultra-violento a uma série de psicopatologias parece ser muito menos uma APOLOGIA do que uma severa CRÍTICA ao excesso de violência, não é mesmo?

Com isso começamos a desatar o nó que diferencia nossa interpretação daquela apresentada pelos Quadrinheiros. Mas ainda resta dar alguns passos, que ficarão para a próxima parte desta série.

Até lá!