4- Bandido bom é… Bandido socialmente assistido para contribuir ativamente com a sociedade?!
A legenda da imagem diz que o grupo dos mutantes é um bando de ‘ratos’. Em seguida ele diz ‘alguns ratos voam’. Sério gente, Miller não se deu sequer ao trabalho de ser sutil quando ele quis dizer que a linha entre o bem e o mal não estava tão clara em TDKR.
O termo fascismo já foi usado para definir variados tipos de governo. Dos modelos economicamente de ‘centro’ como o de Vargas, aos direitistas como Pinochet, ou Hitler e esquerdistas como Stalin ou Mao. Em todos os casos, indicava modelos de governo em que havia uma autoridade única e inquestionável, que atuava com extrema violência e rapidez em eliminar os inimigos do Estado.

Como bem ilustra George Orwell em 1984 o governo fascista é aquele que está permanentemente à caça de um inimigo… e esse inimigo tem que ser absoluto, terrível irredimível, ao passo que o líder é perfeito e suas decisões infalíveis.
Já demonstramos anteriormente que o Batman de TDKR seria mais do que inadequado como figura de referência em um modelo maniqueísta. Desde a primeira página somos levados a questionar a sanidade de seus atos, desde o primeiro momento confrontamo-nos com a frequente dúvida de se ele será capaz de respeitar os próprios limites.
Nesse sentido é intrigante – e, em certa medida, assustador – que haja um grande número de pessoas que acha ‘massa’ a atitude de Batman durante quase toda a duração de TDKR.
Pois se, como acreditamos, a história é em certa medida um conto de redenção, é inegável que as ações que Batman toma são não apenas questionáveis, mas ativa e deliberadamente questionadas ao longo da obra.
Mas, se é assim, o que nos leva a simpatizar tanto com o morcegão?
Note que não apenas o maniqueísmo típico do que se esperaria de uma postura fascista, mas até mesmo uma série de posturas da direita americana são questionadas nessa cena: o ‘cidadão de bem’ rapidamente pode se transformar em ‘bandido’, a liberdade de posse de armas pode não ser uma ideia tão esperta…
Em primeiro lugar – e esse era um sentimento recorrente nas HQs dos anos 1980 – vemos que a patologia do herói reflete uma patologia social. Apoiar o se pôr contra Batman são duas posturas igualmente hipócritas e patológicas (e a HQ é implacável com os personagens que reagem das duas maneiras) pois ele é (como o Comediante em Watchmen) um produto de uma sociedade doentia.
Faz-se necessário que o próprio Bruce Wayne passe por um processo de reconhecimento dessa sua perigosa e constante aproximação com outros frutos de seu tempo para que se opere uma mudança.
E se, por um lado, como poderia calhar aos objetivos de um proto-fascista, rapidamente a sociedade mergulha no caos, a HQ também traz o pesadelo de qualquer Datena, Capitão Nascimento ou Moroni Torgan: os criminosos (sacrilege darling!) podem se redimir!!!!!
Não sejamos ingênuos: claro que há implicação de que os criminosos são parcialmente forçados a colaborar. Mas veja o quão radical – ainda hoje – é que o cavaleiro solitário viesse a apelar para o ‘espírito comunitário’ dos párias sociais.
Faça um exercício de memória. Relembre: em sua timeline quantas pessoas disseram que o Superman estava certo em matar Zod, porque o vilão nunca iria mudar de opinião.
Mais um exercício: quantas pessoas comemoraram ao ver este vídeo?
Bem, pois você acaba de fazer uma lista de pessoas mais inclinadas ao fascismo que o Batman de Frank Miller.
A recusa do morcegão a matar suas vítimas não é acidental… mas, como podemos ver, é baseada em uma esperança, ainda que mínima e relutante de mudança. E ele precisa dessa esperança porque, como vimos quando falamos do encontro com Harvey, ele também quer mudar, encontrar uma forma mais saudável de lidar com sua obsessão por combater o crime.
Mas ah, você tem que ver que o Batman aparece como um messias, um Führer que em sua imensa sabedoria surgiria para guiar uma juventude problemática e inconsequente para o caminho correto que é obedecer o líder. Isso faria muito sentido se – e lembremos, do que falamos sobre Eco na parte I, toda interpretação deve ser baseada na intenção da obra e buscar confirmação nas partes anteriores e posteriores do texto analisado e não em uma simples passagem – após essa passagem não apenas os mutantes são transformados, mas o próprio Batman.
Ao final de TDKR nós temos, telvez pela primeira vez desde os anos 50, um Batman capaz de se relacionar com outras pessoas, sem se apressar em julgá-las por seu comportamento anterior.
Quão diferente do ultra-violento Batman de Denis O’Neil… quão estranho seria ele para o permanentemente paranoico (e, segundo as teorias de Grant Morrison, assassino) Batman escrito por Alan Moore.
Pois, mais do que qualquer um dos mutantes, é Bruce Wayne que se redime e pode, finalmente, se livrar da máscara.
5 – The Dark Knight Strikes Fascismo
Se qualquer pessoa quiser uma prova final de que Frank Miller ou mudou radicalmente de opinião nos últimos 30 anos, ou não entendeu de modo algum o sentido da obra que ele mesmo escreveu e desenhou basta observar duas coisas.
1) A postura de Batman a respeito da posse de armas.
Muito embora, como indicamos, o Morcegão não seja referência moral pra quase ninguém no começo de TDKR, o que permite que ele possa desempenhar esse papel ao fim da história é sua postura radicalmente contrária à ‘pena de morte’, ou pelo menos, ao acúmulo de função de juiz, júri e policial em uma só pessoa.
É comum ouvir o discurso “ah, mas só o que diferencia o Batman de seus vilões é que ele não mata”. Como se não matar fosse um ‘apenas’! Se levarmos em conta que há um forte lobby nos EUA que busca garantir o direito à posse de arma para que os cidadãos tenham direito à ‘proteger sua propriedade’ e se repararmos que Batman não abre mão desse seu modesto fio moral mesmo diante da situação apocalíptica que nos é apresentada ao fim de TDKR e se recusa a usar armas, dá para ter noção do quão importante essa mensagem é para ele.
2) A postura de Frank Miller a respeito dos EUA como Polícia Mundial
Como o pessoal responsável por South Park bem já mostrou, às vezes até o mais ferrenho republicano pode perceber a imbecilidade que é defender que os EUA possam atuar como uma espécie de polícia fiscalizadora do mundo com autoridade para invadir qualquer lugar em nome da defesa de sua soberania e da ‘liberdade’.
É quase impossível conceber que a mesma pessoa que ridicularizava Ronald Reagan em TDKR viria a escrever a nojenta, ingênua e racista Holy Terror.
Ou criticar o movimento Occuppy Wall Street. Pois, ao fim de TDKR o status de Batman é EXATAMENTE igual ao dos membros daquele movimento: parte de uma organização apartidária que age para exigir do governo melhorias sociais, apesar de não incitar uma guerra civil.
Temos, pela primeira vez um Batman planejando construir e não derrubar. Talvez, aliás, ao lado da versão de Grant Morrison, seja a versão mais positiva do personagem.
Nota Final: Frank Miller, como dissemos, não é nem um pouco sutil em TDKR. É notável que o autor tenha escolhido o Superman para representar o Estado. E é igualmente significativo que ele não tenha morrido. De fato o Super (Estado) apenas aprende o valor bastante saudável de aprender a levar uma boa surra (oposição) de vez em quando. Aliás, todo o plano de Batman partia do pressuposto de que o Super entenderia essa mensagem e reconheceria a importância de haver uma oposição ativa ao Estado, o que mostra que seu plano era deliberadamente o de corrigir uma postura autoritária do Estado, prévia a seu retorno. Se lembrarmos que o presidente representado na obra era Ronald Reagan, como não concordar que essa é uma mensagem extremamente anti-fascista?