Watchmen. É chover no molhado exaltar mais uma vez as qualidades da novela gráfica de Moore e Gibbons. Era de se esperar, porém, que diante do enorme sucesso de Watchmen, um grande número de quadrinhos tentasse buscar a via trilhada pela dupla britânica.
Mas, ao invés disso, tivemos uma onda de HQs que buscavam emular temas adultos através de poses hiper-sexualizadas e violência excessiva, que marcaram os anos 90. Como se a lição trazida pelo revisionismo pudesse se resumir a “não se preocupe com a idade recomendada para leitura”.
No início de cada edição de ‘hawkeye’, os leitores nos avisam de cara que essa é a revista que trata de quando o o Gavião Arqueiro não está sendo um vingador. É um convite a observar o lado pouco glamouroso da vida de um ‘super-herói’ de menor escalão.
Pois, e talvez isso possa soar estranho para quem insiste em ser cego e surdo como muitos dos autores das duas grandes, uma HQ cujo mote é a questão “Quem vigia os vigilantes?” obviamente não traz como consequência um tempo em que os vigilantes sejam compreensivamente mais violentos, mais, ao contrário, levanta exatamente dúvidas sobre a possibilidade de haver algum super-heroísmo. Não se trata de esquecer a recomendação ética daquela longínqua Amazing Fantasy #15, “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”, mas, ao contrário, de radicalizar imensamente esse ideal.
Pois, numa temática mais adulta, o super-poder reflete o poder mais cotidiano com o qual todos nós lidamos e ter super-poderes nos insere num jogo imenso de responsabilidades (desde as mais banais até as maiores, político-ideológicas…). Como no nosso dia a dia os heróis fazem uma série de escolhas em relação ao que defender e o que combater – e como defender e como combater. E no mundo pós-revisionista, esse ‘como’ é tão importante quanto o ‘que’ o pretenso herói combate. Não adianta mais apenas ‘combater o crime’, importa debater o que é crime, porque combatê-lo…e porque o ‘herói’ se omite diante de questões importantes.
O Capitão América do universo Ultimate é um exemplo da extrema direita americana que acha que os EUA têm o direito de agir como polícia do mundo.
Cena de Authority, de Warren Ellis et al.
Isso, claro, não quer dizer que a violência seja ‘proibida’ como tema de uma HQ pós-revisionista. Mas ela vem agora com a exigência de não ser mais ‘ingênua’ e ser acompanhada de reflexão ideológica. Pensemos em alguns marcos dos últimos 20 anos: Authority (Warren Ellis et al.), Os Supremos (Mark Millar et al.), Os Invisíveis (Grant Morrison et al.)… em todos eles a violência é analisada como uma forma de dominação. Aliás, mais importante que isso: o discurso que estabelece certos valores (propriedade privada, direito a intervenção em território estrangeiro) é por ele mesmo uma violência. E se omitir diante dessa violência já é um indicador de questionamento dos limites do heroísmo.
O herói dos tempos pós-revisionismo, portanto, têm que caminhar num abismo estreito entre Cila e Caríbdis: por um lado há o risco da imposição fascista de sua visão de mundo através de seus poderes; por outro, o risco, tão grande quanto, de colocarem seus poderes a serviço de uma ideologia dominante cruel e excludente e simplesmente se ocuparem de caçar os bandidos, sem nenhuma preocupação de lidar com o plano macro que é também responsável pela criação do crime.
Gavião Arqueiro, na frente do apartamento em que mora – e protege e ‘administra’.
Que Fraction e Aja tenham escolhido resgatar e radicalizar o modesto caminho antigamente traçado por certo ‘amigão da vizinhança’ e reduzir a esfera de ação de seu personagem quase que exclusivamente a um pequeno condomínio pelo qual o Gavião Arqueiro se sente responsável mostra uma escolha interessante da dupla diante das opções acima citadas. Na sua revista solo, o Gavião Arqueiro é representado como um cara (quase) normal, de inteligência mediana e com certa tendência a tomar decisões não muito acertadas devido a sua completa inaptidão social.
De antemão sabemos que nosso herói não é lá um exemplo a ser seguido. Por outro lado, simpatizamos com suas tentativas de fazer a coisa certa, apesar dos repetidos fracassos, mesmo diante de objetivos aparentemente tão modestos diante do que estamos acostumados a ver nas HQs de super-gente.
Exemplo da incapacidade típica do Gavião Arqueiro de lidar com situações sociais…
A premissa de voltar a trazer o ‘herói’ para uma dimensão mais cotidiana é nada mais que um retorno às origens da Marvel, nos tempos em que certo Peter Parker ainda tinha que se virar para pagar as contas e não perder as provas na faculdade. Informada pela crítica mais pesado dos limites do heroísmo que marcam a indústria após os anos 80, porém, esse retorno a um terreno mais modesto leva a refletir sobre nossas pequenas ações e omissões diárias nas lutas que escolhamos ou não abraçar.
Mas não há premissa boa que sobreviva sem uma boa execução… e é sobre a primorosa execução de Hawkeye que nos deteremos na próxima parte desta série. Até lá.
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continua]